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"Maurice": didática militante sob uma poética teatral crítica e bela

Por meia hora e pouco mais sobrou assunto entre Adriane, Jordana e eu após assistirmos "Maurice", peça da Cia. de Teatro Sala 3, no Teatro Goiânia. Estreou dia 10, vimos dia 11 e haverá reapresentação dia 17 de dezembro de 2014. A dramaturgia trata de homossexualidade e, menos, de religião. Mas assuntamos na porta do teatro zilhões de temas com o eixo da regulação da sociedade. Uma peça que cria o continuum para tanto debate merece aprofundamento e tentarei lançar um olhar crítico sobre "Maurice". Mania de jornalista para quem sabe ser interessante para alguém, carentes que somos de críticos dramáticos.
Os rostos (dos atores ou das personagens?) recepcionam o público. Início do século XX europeu, cenografia cinematográfica da literatura de E. M. Forster. O tempo é cronológico obedecendo capítulos da infância castradora e de parcas brincadeiras até os indícios de virilidade tornados descoberta homossexual e contrastes dos personagens esféricos de Maurice Hall e Clive Durham. Em perspectiva plana, médico, empregado e irmã são essenciais para os (muitos e bons) momentos de clímax. É o que me recordo fenomenicamente de "Maurice".

Flyer de divulgação

A crítica ao teatro crítico

Descrita a peça, off spoiler, vamos para a interpretação e a crítica. Se quiser mais informações objetivas sobre a peça, leia o release oficial na página do evento.

Fornece a régua quem usa as medidas: a Cia. de Teatro Sala 3 declara "a arte teatral como importante instrumento de reflexão social, cultural e política" e o sujeito com "potencial reflexivo, crítico e transformador". O pensamento social crítico, portanto, me serve de eixo para a interpretação.

Foto: Divulgação
Uma peça militante pode ser vista na proposta de criticidade que a Cia. Sala 3 apresenta. Maurice vive um drama que talvez seja interessante por ser homossexual.

O enredo, sem sua pegada crítica (ou militante?), segue uma estrutura padrão de romances, salvo todo jogo teatral que brilhantemente se desenvolve e que salva esse aspecto interpretativo.

A gradual descoberta por Maurice de sua identidade (afetiva e sexual) é toda baseada no argumento do embate entre a natureza sexual e a cultura opressora.

Esta última é representada pelas relações de luta de classes no âmbito do status burguês e pelo vínculo religioso, críticas prontas, cozidas.

Conforme autores como Woodward e Hall, o jogo de identidade da contemporaneidade já é bem mais complexo. Um texto de Plínio Marcos, recém-apresentado no FUGA deste ano com direção de Natássia Garcia (O abajur lilás), busca esse outro viés na discussão sobre sexualidade, mas no âmbito da prostituição.

Maurice, contudo, está em outra vibe, ligado às narrativas românticas clássicas. Viajando para além do objeto de estudo aqui, ainda não assisti a peças que pautem o âmbito político como tema central, o âmbito público desse debate e não apenas a vida privada.

Mas isso é algo que se pensa no âmbito sociológico, leigamente, a partir do trabalho já apresentado. É este também um limite entre o teatro como instrumento para formação, como quer a Cia. Sala 3, e o teatro como unidade artística, atividade de contemplação.

"Maurice" provavelmente vem em momento propício, dados os atuais refluxos de conservadorismo na política brasileira, para a função de teatro crítico sobre o tema da homossexualidade. Mas que bom que não se limitou a essa - já honrosa - função. "Maurice" no teatro foi além: em direção ao imagético belo do jogo teatral em tons de clássico sob temática tão contemporânea.

Se Artaud já incluia ator e plateia no mesmo processo e Boal radicalizava isso com seus espectatores, um teatro crítico e transformador acerta menos ao partir para o didatismo característico da militância (exemplificado nas peças ambientalistas infantilizadas: 'não jogue o lixo na rua porque é feio') e acerta mais ao sugerir narrativas identificáveis pelo investimento no jogo teatral.

O ator-dramaturgo aparece como narrador para introduzir a estória, porém não retorna. Esta é uma opção que para mim foi inesperada, mas positiva nesse sentido. Se retornasse para ensinar a lição, como fez quando começou a peça, cairia no didatismo.

Há jogadas simbólicas muito boas. Posso não haver entendido, mas interpretei o 'médico' com quem Maurice se consulta, uma personagem feminina, vulgarizada, como o arquétipo feminino repressor da mãe. Se for, foi linda a criação. Se não, também foi linda porque permitiu interpretações várias além desta. Dar trabalho ao público também faz parte de sua transformação pelo teatro.

Aspectos técnicos: do texto às opções estéticas

Foto: Divulgação
A dramaturgia assinada por Andreane Lima, na forma de livre adaptação da obra de E. M. Forster, me pareceu na verdade muito fiel ao contexto do escritor inglês.

Neste quesito, só resta parabenizar o (sem dúvida) acertado trabalho de dramaturgia do Andreane. A escrita para o teatro é um grande desafio, que não se compara ao cinema e à literatura, aliás duas fortes influências claras na peça.

Senti um compromisso forte e bem medido por parte do dramaturgo com seu objeto de trabalho: além de talento e formação em Letras, o dramaturgo soube ser autor consciente.

Na encenação, eu registraria, de modo arriscado e cru, a necessidade de maior pré-expressividade em alguns momentos descontraídos para o personagem de Clive e cuidados com o uso cotidianizado da voz referente à vida do texto no personagem Skinder, o que não merece ser esmiuçado por eu ter assistido apenas uma vez; e sabemos que pequenos problemas, como o Windows reiniciar bem no meio da apresentação, acontecem humana e tecnologicamente.

Agora... para tudo: Que cenário é este? Não temos apenas algo belo com iluminação, trilha sonora e recursos audiovisuais amplamente explorados, mas uma montagem de cena baseada no jogo.

O espaço ganha sua projeção pontual e leva o público para o mesmo "lugar" construído. O jogo, aliás, comandou a marcação de palco com riqueza apreciável.

Saldo

Preciso criticar algo de que não tenha adorado tanto quanto "Maurice" para mostrar o distanciamento que pretendi aplicar, mas acabo aqui sendo piegas.

"Maurice", de fato, conforme também me assegurou o professor, palhaçator e diretor, Marlos Pedrosa, deve ser "um dos mais belos espetáculos nos últimos 10 anos em Goiás" (eu só não tenho todo esse tempo de vivência no meio teatral goiano para dizer, mas...).

Vídeo de divulgação: https://www.facebook.com/video.php?v=844490452258750&set=vb.100000934092325&type=2&theater

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FICHA TÉCNICA

Elenco: Andreane Lima, Esley Zambel, Victor Melo, Isabela Naves e Gabriela Lima.
Dramaturgia: Andreane Lima
Direção: Altair de Sousa
Assistente de direção: Renata Weber
Programação Visual: Paulinho Pessoa
Figurino: Caroline Albuquerque
Iluminação: Rodrigo Horse
Cenografia: Daniel Herrero
Direção de produção: Cia. de Teatro Sala 3

Classificação indicativa: A partir de 14 anos
Ingressos antecipados: Athena Bar & Pub - R$ 15,00
Teatro Goiânia - Dia 17, às 21 horas.
Avenida Tocantins esquina com Avenida Anhanguera.

* João Damasio é jornalista, mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e ator-pesquisador da Cia Teatro Ser, cursou Interpretação Teatral no CEP Basileu França.

Comentários

  1. Querido amigo

    Desejo para ti
    braços bem abertos
    para receber com carinho
    o ano que se aproxima.
    Ele traz um presente:
    - Uma vontade de que olhes
    para alguém ou para alguma coisa,
    com olhos de primeira vez.
    Recebendo este presente,
    as sementes de alegria que te habitam,
    estarão recebendo seu melhor alimento,
    e assim se transformarão em realidade,
    perfumando sua vida e sua alma
    com sua maravilhosa, única e infinita
    essência de felicidade.

    Um ano novo de olhares novos para ti.

    Aluísio Cavalcante Jr.

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