Pular para o conteúdo principal

Um relato de gratidão sobre a arte de Yashira


Quando eu era pequeno, lembro de ver a Yashira nas ruas de Palmelo. Ela era a louca e eu tinha medo dela, mas achava curioso. Uma parte de mim queria se aproximar dela, foi a parte que depois me levou a fazer curso de teatro e, quando eu atuava, eu lembrava um pouco dela e das performances que ela promovia nas ruas da cidade. Aí eu comecei a entender que era arte o que ela fazia. Mas era uma arte muito estranha, eu não achava bonito. Comecei a achar bonito quando me envolvi ativamente com movimentos ambientalistas durante uns cinco anos e vi que tudo o que ela fazia como arte era sustentável e que ela tinha uma mensagem ecológica. O ativismo dela não era pautado em um coletivo de políticas públicas como o meu, era um envolvimento por inteira. Junto, era uma causa espiritual. Eu entendi isso quando, espírita que sempre fui, tentava compreender o que era mediunidade em mim e ouvi ela dizendo que tudo era mediunidade nela. A arte, a ecologia, a espiritualidade... expandindo mutuamente seus limites. Por diversas vezes, da adolescência à vida adulta, me detive pensando na Yashira e arrumei desculpas formais para ir conversar com ela. Quando ia promover ações ambientais, quando ia apresentar a cidade para amigos e turistas na cidade, quando fazia jornalismo e também quando fui fazer minha dissertação de mestrado sobre a cidade e fiz questão de entrevistá-la sobre o imaginário da cidade espírita.





Hoje foi um desses momentos em que me detive pensando na Yashira, depois de por acaso encontrar e ler essa entrevista que ela concedeu a uma revista especializada em arte. É engraçado perceber como o enquadramento institucional de algo diz que tudo isso que eu sempre vi de perto desde a infância e se relacionou a vários aspectos identitários que assumi durante a vida é um trabalho artístico - e o valor que isso parece acrescentar. Para mim, é interessante perceber um pouco mais. A entrevista que enquadra o que é o quê no trabalho artístico da Yashira sempre tenta fechar o sentido: "Mas Yashira, como você define esses trabalhos?"; "Como você escolhe as folhas das árvores para montar as indumentárias?"; "Como você diferencia esse trabalho daquele?". Mas ela responde: "Eu não defino"; "Eu não escolho"; "Eu não diferencio". Mas é claro que ela faz, escolhe e pensa. O que está em questão é que ela questiona o por quê de ter que definir, escolher e diferenciar para ser o que é o trabalho dela.
Quando questionada sobre o museu de arte que ela tem em casa, em Palmelo, ela disse: "Ele está fechado porque ninguém acredita nele". As respostas tão sinceras, diretas e simples trazem muitas camadas importantes de compreensão. Para mim, faz muito sentido que um museu seja aberto para quem acredita nele. Acontece que ela não tem escolha. Yashira é todo um museu que segue com a gente. Acho que essa é a capacidade e o desejo dos artistas. Yashira está na minha imaginação, nas portas que abriu à minha percepção para quando fui conhecendo outros artistas, também no imaginário palmelino, no imaginário dos artistas goianos, nas histórias todas que ela conta e nas gerações para as quais ela já foi a louca, que desestabilizou os sentidos, que ensinou e fez pensar, cujas imagens me acompanham e sobre as quais lembro com gratidão, agora sem juízo de loucura ou de perfeição. Esse textão foi meio sem motivo, não tão definido por alguma coisa, como é a arte da Yashira. Partilho simplesmente para, espontaneamente, expressar essa lembrança e compartilhar a entrevista de Yashira para quem quiser conhecer, lembrar...
Entrevista completa da Revista Performatus, publicada em 2017, acessível em: http://performatus.com.br/entrevistas/yashira/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma lição de um Desaguar: a profissionalização do ator

A 13ª Mostra Desaguar do Centro de Educação Profissional em Artes Basileu França, que apresentou os espetáculos teatrais de formatura de alunos-atores nos dias 18 a 22 de novembro de 2014, me mostrou um pouco do que talvez eu apenas suspeitasse durante meus dois anos de estudo neste Teatro-Escola e me recordou importantes referências vivas e cotidianas durante meu processo de formação. Na verdade, sou especialista de generalidades humanas. Estudo comunicação e teatro, coisas que todo mundo nasce fazendo, coisas sem as quais a humanidade não seria. Atividades profissionais que sempre causam controvérsias burocráticas. O jornalismo perde seu diploma e todo mundo já fez 'teatrin'. Meu pêndulo balança muito para a comunicação popular e para o teatro do oprimido... Minha experiência até agora já me deu suficientes provas de que, como ferramentas pedagógicas, são libertadoras da condição humana. Por outro lado, meu pêndulo percebe o artista em si mesmo e sua investida profis

AUTODIAGNÓSTICO: Com toda beleza e abominação.

Todos prometem (e não cumprem) coisas no ano novo, eu não prometo nada. Como flecha de ano novo, encerro 2010 e inicio 2011 com meu autodiagnóstico, encerrando a série "Diagnósticos" do meu blog. Ficha Paciente: João Damásio da Silva Neto. Perfil: http://www.twitter.com/joaodamasio Idade: 19 anos. Cidade: Palmelo/Goiânia - GO. Ocupação: Acadêmico de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Restrições apresentadas: Egoísmo caótico que desregula a timidez. Prescrições: Nunca permitir mais de uma hora ociosa. Diagnóstico rápido: Antagonismo ao espelho. Diagnóstico completo (para quem ousa entender): Única regra para quem ler este diagnóstico: Tudo é mentira! Ora, como pode alguém se autodiagnosticar com sinceridade? Coisa de louco! Mas é minha obrigação, afinal fui ensinado a não julgar e estes diagnósticos mensais onde descrevo todo mundo nos ínfimos detalhes alcançados pela minha pouca visão não é menos que julgamento. Então, que pelo meno

Um momento sem existencialismo

Amo e contribuo com o ato simples das coisas que fogem ao regaço existencial, emocionando a pupila ao puxar uma lágrima lá do coração, desentupindo as veias, perfazendo o húmus do trabalho ou da ressaca - o suor ou a gordura - em matéria-prima-quase-irmã de objetivação do Ser, do Dasein. Quando um atraso, um copo quebrado, uma mancha na roupa, um furo na ceroula ou uma multigenia em crioula semente ocorre, incorre o vento que parte da borboleta para provocar um tsunami. A existência - ou o existencialismo - como rotina é tábua farpada sem velcros: sem o verniz sobre lisura nem a velha rustidão folclórica. Talha-se, porém, mandamentos em pedras, em areia, em madeira desde quando os media existem. As metáforas de aprendiz evidenciam o cobre pálido a represar ditados instintos: recalculados, racionalizados. Sofro sem silêncio o só com a voz do silêncio. Existo, para além das standnormalidades, paranóides de totem em pouca idade. A doença contagia o papel. Graças! Mas ainda há mais