Pular para o conteúdo principal

Todo passo

Saul vê formigas ao inclinar a cabeça para baixo como quem mede o próximo, primeiro, último e, portanto, único passo deste dia. Sorri às gostosas gotas de chuva a mantê-lo cabisbaixo como quem protege o rosto dos pingos gelados e cristalinos.

Não tinha profissão. Neste passo, porém, calculado em meio segundo, ele pretende ter profissão: assassino. Não golpeará; nenhuma bala sairá de suas mãos em tiros; em nada aplicará força de homem.

Ergue o pé. Ergueu. Respirou calmo mas fundamente em atividade comum do corpo ao mínimo exercício de vida. Impulsionado à diante pelo terço de meio segundo de corajosa covardia, até cientificou-se das formigas trabalhadoras no chão.

Venta agora em todas as direções. Mesmo que levemente ele sente, mas sabe que a única direção que o ar da natureza o levará é a já eleita por sua conspiração pessoal. Avante.

Saul completa noventa e um graus com o primeiro pé que, diga-se de passagem, lhe basta para a decisão. Passo farto, curto, direto e, ainda assim, lento. Tal como a idade avançada que corre mais rápido após os dezoito anos, sua pegada avança sem lástimas do nonagésimo segundo ao último e incalculável grau de seu ato.

Nada cravou. Nem precisou pular. Vê o meio fio antes do asfalto duro. A visão deturpada lhe fez crer no passo horizontal rumo à faixa de pedestres, mas a cena que ocorre agora é outra na mesma. Assassino de si próprio, todo passo daquele dia, do meio fio branco que era borda de sua janela recém-pintada do décimo segundo andar foi um só. O único todo passo do dia, completado. As formigas são gente. Não contemple a tragédia metros abaixo.

Desde que se mudou a cinco dias do andar 2011 ao 2012, pensou sem ciência de si neste momento. Acordou para dar o passo. Seu tombo pode ser fatal para todas as formigas que atingir com todo passo. Acordou para dar o passo. Acordou para dar o passo. Acordou para... parar e ver que o apartamento 2012 é todo novo e requer mobília digna de cada passo seu. Saul quer dar todo passo em piso limpo porque as formigas não merecem ser esmagadas por todo passo de todo mundo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um relato de gratidão sobre a arte de Yashira

Quando eu era pequeno, lembro de ver a Yashira nas ruas de Palmelo. Ela era a louca e eu tinha medo dela, mas achava curioso. Uma parte de mim queria se aproximar dela, foi a parte que depois me levou a fazer curso de teatro e, quando eu atuava, eu lembrava um pouco dela e das performances que ela promovia nas ruas da cidade. Aí eu comecei a entender que era arte o que ela fazia. Mas era uma arte muito estranha, eu não achava bonito. Comecei a achar bonito quando me envolvi ativamente com movimentos ambientalistas durante uns cinco anos e vi que tudo o que ela fazia como arte era sustentável e que ela tinha uma mensagem ecológica. O ativismo dela não era pautado em um coletivo de políticas públicas como o meu, era um envolvimento por inteira. Junto, era uma causa espiritual. Eu entendi isso quando, espírita que sempre fui, tentava compreender o que era mediunidade em mim e ouvi ela dizendo que tudo era mediunidade nela. A arte, a ecologia, a espiritualidade... expandindo mutuamente s

Uma lição de um Desaguar: a profissionalização do ator

A 13ª Mostra Desaguar do Centro de Educação Profissional em Artes Basileu França, que apresentou os espetáculos teatrais de formatura de alunos-atores nos dias 18 a 22 de novembro de 2014, me mostrou um pouco do que talvez eu apenas suspeitasse durante meus dois anos de estudo neste Teatro-Escola e me recordou importantes referências vivas e cotidianas durante meu processo de formação. Na verdade, sou especialista de generalidades humanas. Estudo comunicação e teatro, coisas que todo mundo nasce fazendo, coisas sem as quais a humanidade não seria. Atividades profissionais que sempre causam controvérsias burocráticas. O jornalismo perde seu diploma e todo mundo já fez 'teatrin'. Meu pêndulo balança muito para a comunicação popular e para o teatro do oprimido... Minha experiência até agora já me deu suficientes provas de que, como ferramentas pedagógicas, são libertadoras da condição humana. Por outro lado, meu pêndulo percebe o artista em si mesmo e sua investida profis

Por quê as faculdades particulares devem ser explodidas

Pelo mesmo motivo que o mundo deve explodir. Como dizem que deve ser... apocalipse mesmo. Lançar o fogo e arar a terra para receber novo plantio, cultivar (de cultura). Sim, eu sei que não é algo que um presidente de centro acadêmico em uma instituição particular costuma falar, mas eu acho que as faculdade particulares deveriam explodir! Até a que eu estudo, claro! Sim, eu também sei que as universidades públicas são cheias de problemas e que seus alunos tem a leve impressão de que as particulares são melhores porque a verba depende apenas de iniciativa privada. Ai é que começa o problema. O Cristiano Cunha, companheiro anapolino e amigo de movimentos sociais, uma vez disse: "A cultura é o problema". Eu, como todos na ocasião, não entendi. Nos últimos dias, tenho compreendido melhor. Nas faculdades particulares, cultiva-se apenas o "estuda ai e faça nosso nome acadêmico" enquanto isso eles ganham dinheiro, mesmo que jurem de pés juntos não ser a motivação