- Eu o compreendo.
- Mas entender um problema não é suficiente para resolvê-lo - retrucou seu ímpar.
- Pelo menos ameniza a situação. Só assim é possível, para mim, relevar suas ofensas.
Alterus retirou o leite do fogo e, no primeiro copo, despejou um pouco mais do que restaria para o seu segundo. Pensava no maior mandamento da lei de Deus, o ditado pelo Cristo, "amar o próximo como a si mesmo". Cai bem. Para um café da manhã, de pão, rosca e fruta, a bebida láctea cai bem: digere e fermenta. Se é possível fermentar um novo dia, é porque já foi digerido o que antes se engoliu. Claro, também aqui há dualidade: alimenta, mas às vezes empazina. Ontem, empanzinou:
Criatura, prostrou-se como criado. É que logo que avistou sua mãe, a contemplou como genitora. Décadas depois da primordial iluminação mundana, reconheceu-se naquele mesmo ontem como uma cria que usava saias.
- Não! Este não é você - rechaçou a mãe.
- Hoje, eu uso saias.
- Por que?
- Porque minha cintura e minhas pernas são para saias. E, no mais, eu quero.
- Saia.
Alterus entendeu que saísse de si, já que não poderia ter a cintura e as pernas que tem. Ser o que é. Mas entendeu a pequeneza da mãe, que não sabe que só se usa calças porque, aqui, demoraram a inventar saias. Diferente de ali.
- Eu compreendo.
Só quem sabe relativizar a cultura é capaz de compreender a situação toda. "Se eu compreendo", pensara, "cabe a mim amenizar a situação, relevar as ofensas, resignar".
- Mas entender um problema não é suficiente para resolvê-lo - escutou hoje de seu ímpar.
E saiu de saias porque, apesar de entender a mãe, continuavam discordando.
*
- Mas ai é que está, Alterus! Não há o que pensar mais.
- Não, não... ai é que está! Veja bem, meu caro, eu compreendo até isso. Discordar e vivenciar rupturas faz parte da vida. Ainda que sofridas, são compreensíveis e não haveria vida sem diferença.
- Genial. E vou aplaudi-lo se isso mudar o que disse antes: você entendeu, mas entender um problema não é suficiente para resolvê-lo, Alterus. Na discordância só te cabe discordar. Se você simplesmente relevar tudo porque as discordâncias são benéficas à vida, você deixará de discordar e causará malefícios.
- Eu compreendo... digo, digo. Sobre este seu argumento.
Nos estudos de ontem a noite, Alterus folheou Adorno: "A primeira exigência de todas para a educação é que Auschwitz não se repita". A crítica do iluminismo chegou a este entendimento.
- Eu compreendo.
- Não - disse o professor. - É preciso mais do que compreender essa necessidade. Seus estudos se completarão com Paulo Freire na próxima aula. A educação deve ser um ato libertador. Não basta compreender, pois...
- Eu sei. Entender um problema como a história que marcou Auschwitz não é suficiente para resolvê-lo nos dias atuais, aqui no Brasil, com "Bolsonada" e "Temerosos".
- Exato.
*
Naquela noite, depois da repressão da mãe e da lição do professor, saiu com os amigos. Alguma coisa, no final de tudo (ou pelo menos de um dia como este), precisa sublimar. Precisa ser diversão. O som ambiente, naquele bar, lhe relaxava:
"Me rendo aos defeitos mais seculares
Divirto-me depressa
Divirto-me depressa
Divirto-me depressa"
Adorno, que Alterus sempre gostou de ler, o fazia saber que até mesmo a diversão não passa de estratégia do sistema. Roda para rato. Diversão é quando não se fala a sério. Por isso sempre concordava com as discrepâncias dos amigos.
- Eu falo mesmo que a cor da bandeira do Vila Nova é muito feia - disse um grande amigo.
- Mas - constatou Alterus - você torce para o Atlético.
A discordância continuou sem fim, sem diversão também, a despeito de os dois times estamparem a mesma cor na bandeira e até, leu-se no jornal, encomendarem os tecidos na mesma loja em consórcio. Os dois amigos e todos os outros falaram. Alterus, por ser quem é, disse:
- Eu compreendo, mas discordo e preciso ir me deitar.
Todos acharam que Alterus era individualista demais e não deixava livres as opiniões. No sono, sonhou que entrava em um carro que não dirigia, mas ao menos via alguém em quem confiava dirigindo. Deixava que a mãe não estivesse presente. Ela tem sim suas próprias saias. Ele usava saia. Foi encontrar-se com os amigos no lugar mais colorido que pôde, sem dizer que os tinha por mais elevada estima que a si mesmo, pois "amar o próximo como a si mesmo", colocar-se em pé de igualdade com o próximo, no limite, acaba sendo o mesmo sair de si. Quis ter isso resolvido, mas acordou sem se lembrar.
Tomou aquele café da manhã, com seu copo menos cheio que de seu ímpar, e, depois do leite, digeriu tudo o que se passou ontem. Lembrou-se do sonho quando abriu seu livro de leitura atual, com Guimarães Rosa dizendo: "A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio". "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando".
No almoço daquele dia foi capaz de ir ao restaurante de saia.
- Mas entender um problema não é suficiente para resolvê-lo - retrucou seu ímpar.
- Pelo menos ameniza a situação. Só assim é possível, para mim, relevar suas ofensas.
Alterus retirou o leite do fogo e, no primeiro copo, despejou um pouco mais do que restaria para o seu segundo. Pensava no maior mandamento da lei de Deus, o ditado pelo Cristo, "amar o próximo como a si mesmo". Cai bem. Para um café da manhã, de pão, rosca e fruta, a bebida láctea cai bem: digere e fermenta. Se é possível fermentar um novo dia, é porque já foi digerido o que antes se engoliu. Claro, também aqui há dualidade: alimenta, mas às vezes empazina. Ontem, empanzinou:
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Criatura, prostrou-se como criado. É que logo que avistou sua mãe, a contemplou como genitora. Décadas depois da primordial iluminação mundana, reconheceu-se naquele mesmo ontem como uma cria que usava saias.
- Não! Este não é você - rechaçou a mãe.
- Hoje, eu uso saias.
- Por que?
- Porque minha cintura e minhas pernas são para saias. E, no mais, eu quero.
- Saia.
Alterus entendeu que saísse de si, já que não poderia ter a cintura e as pernas que tem. Ser o que é. Mas entendeu a pequeneza da mãe, que não sabe que só se usa calças porque, aqui, demoraram a inventar saias. Diferente de ali.
- Eu compreendo.
Só quem sabe relativizar a cultura é capaz de compreender a situação toda. "Se eu compreendo", pensara, "cabe a mim amenizar a situação, relevar as ofensas, resignar".
- Mas entender um problema não é suficiente para resolvê-lo - escutou hoje de seu ímpar.
E saiu de saias porque, apesar de entender a mãe, continuavam discordando.
*
- Mas ai é que está, Alterus! Não há o que pensar mais.
- Não, não... ai é que está! Veja bem, meu caro, eu compreendo até isso. Discordar e vivenciar rupturas faz parte da vida. Ainda que sofridas, são compreensíveis e não haveria vida sem diferença.
- Genial. E vou aplaudi-lo se isso mudar o que disse antes: você entendeu, mas entender um problema não é suficiente para resolvê-lo, Alterus. Na discordância só te cabe discordar. Se você simplesmente relevar tudo porque as discordâncias são benéficas à vida, você deixará de discordar e causará malefícios.
- Eu compreendo... digo, digo. Sobre este seu argumento.
Nos estudos de ontem a noite, Alterus folheou Adorno: "A primeira exigência de todas para a educação é que Auschwitz não se repita". A crítica do iluminismo chegou a este entendimento.
- Eu compreendo.
- Não - disse o professor. - É preciso mais do que compreender essa necessidade. Seus estudos se completarão com Paulo Freire na próxima aula. A educação deve ser um ato libertador. Não basta compreender, pois...
- Eu sei. Entender um problema como a história que marcou Auschwitz não é suficiente para resolvê-lo nos dias atuais, aqui no Brasil, com "Bolsonada" e "Temerosos".
- Exato.
*
Naquela noite, depois da repressão da mãe e da lição do professor, saiu com os amigos. Alguma coisa, no final de tudo (ou pelo menos de um dia como este), precisa sublimar. Precisa ser diversão. O som ambiente, naquele bar, lhe relaxava:
"Me rendo aos defeitos mais seculares
Divirto-me depressa
Divirto-me depressa
Divirto-me depressa"
Adorno, que Alterus sempre gostou de ler, o fazia saber que até mesmo a diversão não passa de estratégia do sistema. Roda para rato. Diversão é quando não se fala a sério. Por isso sempre concordava com as discrepâncias dos amigos.
- Eu falo mesmo que a cor da bandeira do Vila Nova é muito feia - disse um grande amigo.
- Mas - constatou Alterus - você torce para o Atlético.
A discordância continuou sem fim, sem diversão também, a despeito de os dois times estamparem a mesma cor na bandeira e até, leu-se no jornal, encomendarem os tecidos na mesma loja em consórcio. Os dois amigos e todos os outros falaram. Alterus, por ser quem é, disse:
- Eu compreendo, mas discordo e preciso ir me deitar.
Todos acharam que Alterus era individualista demais e não deixava livres as opiniões. No sono, sonhou que entrava em um carro que não dirigia, mas ao menos via alguém em quem confiava dirigindo. Deixava que a mãe não estivesse presente. Ela tem sim suas próprias saias. Ele usava saia. Foi encontrar-se com os amigos no lugar mais colorido que pôde, sem dizer que os tinha por mais elevada estima que a si mesmo, pois "amar o próximo como a si mesmo", colocar-se em pé de igualdade com o próximo, no limite, acaba sendo o mesmo sair de si. Quis ter isso resolvido, mas acordou sem se lembrar.
Tomou aquele café da manhã, com seu copo menos cheio que de seu ímpar, e, depois do leite, digeriu tudo o que se passou ontem. Lembrou-se do sonho quando abriu seu livro de leitura atual, com Guimarães Rosa dizendo: "A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio". "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando".
No almoço daquele dia foi capaz de ir ao restaurante de saia.
Parabéns, um conto que expressa a coragem de alterus, mas realmente a afirmação de uma alteridade nunca é fácil.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário Elizabeth! Sua conclusão me alivia, pois foi na mosca. ;)
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