Pular para o conteúdo principal

Margem, ordem e progresso

Ordeiro, sempre foi esse povo brasileiro. Da estampada “Ordem e Progresso” de nossa bandeira, lia-se nesta segunda palavra uma simples poesia... para não dizer utopia. Eis que se realiza: O progresso tem chegado às cidades.

Estamos em Pires do Rio (GO), ao lado da minha querida Palmelo, sudeste goiano. O progresso chegou sob a ordem do ícone da revolução industrial, grandes empresas e extensas fábricas se instalaram empregando o povo vizinho e ampliando os cercados do município.

Os 30 mil habitantes hoje podem até acessar um site emdesenvolvimento. Os canteiros nas ruas e praças estão um mimo só. Escolas, particulares e públicas, indústrias, comércio fervilhante, liquidação todo dia, chamando o concurso das empresas de crediário. É a modernidade.

Só faltava um item característico para o diagnóstico definitivo dessa patologia social chamada progresso iluminista: a margem. Mas não se preocupem, pois já se consegue delinear. Há lojas em que se sabe, só entra rico. Ou seja, não entra Maria, a mulher que me forneceu o aval de cidade grande e desenvolvida para Pires do Rio. Quis fotografá-la, mas não o fiz.

Com um menino no colo, possivelmente o filho, o irmão ou apenas outro igual que viu ser desenhada a margem da sociedade bem sob seus pés, nem 10 nem 20 metros de distância. Parece, afinal, que não há ordem e progresso sem margem. E sempre há quem esteja de um lado e de outro dessa margem.

Maria apareceu, então, como pedinte de trocados para o leite do filho, o garoto em seu colo. Maria pode não ser o seu nome. O menino pode não ser seu filho. Mas a necessidade é real, tem nome (progresso) e criou um filho (marginalidade).

Infelizmente, a cidade só acordará de seu tardio sonho iluminista quando esses filhos se multiplicarem e desenvolverem outras habilidades incomodativas que não o ato de pedir um trocado... o consumo das drogas sempre disponíveis, os furtos em nome da própria sobrevivência ou da sobrevivência de um vício necessário, papelões espalhados, panelas à espera de moeda nas ruas, dentre tantos outros efeitos já conhecidos de todos, mas pouco repensados.

No Brasil, o país que tem o formato e a sina de coração do mundo, não pode ser ordeiro apenas sob as arguições da razão modernista. Outra bandeira, já assinalada por Ismael, paira esperando nosso concurso: “Deus, Cristo e Caridade”. Para os ateus, seja “Amor, Justiça e Caridade”.

Se o paradigma não mudar, se a frase da bandeira não mudar, seguiremos na perspectiva que ainda hoje desconcilia fraternidade e liberdade, sem achar o elo da humildade, e que tem no conceito de justiça, o ato de punir marginais, quando deveríamos assumi-los como filhos queridos, prevenindo-lhes a rusga.

História do texto e referência

Esse texto surgiu, necessariamente, porque Maria me pediu um trocado enquanto sentado num dos bancos da praça central de Pires do Rio, eu lia o subtítulo “Violência e progresso” no livro “A Escola de Frankfurt – luzes e sombras do iluminismo”, de Olgária C. F. Matos. É clara a referência da análise que poderia ter ainda outras tantas abordagens. “Brasil, coração do mundo e pátria do evangelho” (FEB, 1938) e “Rumos para uma nova sociedade” (USE, 1996) também referenciam a conclusão desse pensamento ensaiado.

Comentários

  1. João, preciso lhe convidar para postar no Blog Viagem Constante. Seu texto me fez pensar em tres coisas diferentes, na ordem e nas pessoas a margem do progresso, algo assim.

    De qualquer forma, parabéns pelas atualizações, rs.

    Abraços.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu, Adenevaldo! Xácomigo que um dia te mando algo pro Viagem Constante, quando achar que tenho texto adequado.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

AUTODIAGNÓSTICO: Com toda beleza e abominação.

Todos prometem (e não cumprem) coisas no ano novo, eu não prometo nada. Como flecha de ano novo, encerro 2010 e inicio 2011 com meu autodiagnóstico, encerrando a série "Diagnósticos" do meu blog. Ficha Paciente: João Damásio da Silva Neto. Perfil: http://www.twitter.com/joaodamasio Idade: 19 anos. Cidade: Palmelo/Goiânia - GO. Ocupação: Acadêmico de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Restrições apresentadas: Egoísmo caótico que desregula a timidez. Prescrições: Nunca permitir mais de uma hora ociosa. Diagnóstico rápido: Antagonismo ao espelho. Diagnóstico completo (para quem ousa entender): Única regra para quem ler este diagnóstico: Tudo é mentira! Ora, como pode alguém se autodiagnosticar com sinceridade? Coisa de louco! Mas é minha obrigação, afinal fui ensinado a não julgar e estes diagnósticos mensais onde descrevo todo mundo nos ínfimos detalhes alcançados pela minha pouca visão não é menos que julgamento. Então, que pelo meno

Trotes do tempo

Por em marcha a vida aqui dentro e lá fora vida alegre e sofrida onde você mora? Sei não Tenho preguiça Nem tesão Nada me atiça Minha ânsia é para que chegue amanhã E eu descubra o que foi do hoje Só de ânsia, nada pela manhã

Uma lição de um Desaguar: a profissionalização do ator

A 13ª Mostra Desaguar do Centro de Educação Profissional em Artes Basileu França, que apresentou os espetáculos teatrais de formatura de alunos-atores nos dias 18 a 22 de novembro de 2014, me mostrou um pouco do que talvez eu apenas suspeitasse durante meus dois anos de estudo neste Teatro-Escola e me recordou importantes referências vivas e cotidianas durante meu processo de formação. Na verdade, sou especialista de generalidades humanas. Estudo comunicação e teatro, coisas que todo mundo nasce fazendo, coisas sem as quais a humanidade não seria. Atividades profissionais que sempre causam controvérsias burocráticas. O jornalismo perde seu diploma e todo mundo já fez 'teatrin'. Meu pêndulo balança muito para a comunicação popular e para o teatro do oprimido... Minha experiência até agora já me deu suficientes provas de que, como ferramentas pedagógicas, são libertadoras da condição humana. Por outro lado, meu pêndulo percebe o artista em si mesmo e sua investida profis